Paranhos da Beira é uma vila do concelho de Seia, sede de freguesia, onde, outrora, pelo menos, desde o século XIX, conforme comprovam diversos registos, escritos e orais, existiu uma importante indústria familiar de produção de cerâmica, que abrangia Paranhos da Beira e a localidade anexa de Carvalhal da Louça.
Os testemunhos desta tradição mostram, claramente, a existência de um grupo de artesãos que juntou um saber revelado numa arte de grande antiguidade. Os louceiros, assim chamados pelo povo, laboravam o barro repetindo, em cada situação e em cada gesto, um ato que se perdeu no tempo. Hoje os dias são outros, e há muito que as últimas mãos pararam de tocar no barro e de girar a roda. Muitos procuraram a sorte noutras profissões e noutras paragens, porque esta arte já não os remediava. Perdeu-se a feição rústica e simples de fazer louça, restando-nos apenas resquícios reveladores deste ofício: o interessante topónimo “Carvalhal da Louça”, e algumas alcunhas familiares, como os “ barrocos” ou o “barroco”, e a canção de trabalho o “Barrinho”.
Nas olarias de Paranhos da Beira e Carvalhal da Louça usava-se na produção de louça, conforme descrevem os etnólogos e os últimos oleiros, a roda alta ou torno, sendo esta etapa do trabalho exclusivo dos homens. As mulheres ajudavam na preparação do barro, no seu cozimento e na venda da loiça. O barro utilizado vinha de Ervedal da Beira (Oliveira do Hospital, Coimbra), sendo transportado em carros de bois. O barro era colocado no “barreiro” (penedo liso, bastante plano, rodeado por pedras, existente no exterior da oficina, onde se punha o barro para ser derregado e pisado com os pés). Aqui, era partido em pedaços e acrescentava-se água, ficando a desfazer-se. Seguidamente, era pisado com os pés pelas mulheres até estar em condições para ser amassado à mão. Nos últimos anos de produção de loiça, quando os oleiros foram desaparecendo, o barro passou a ser pisado na própria olaria, conforme conta o último oleiro do Carvalhal da Louça, senhor Alcídio Abel.
No lugar do Carvalhal da Louça, de acordo com o levantamento feito em 1905, por Fortunato Temudo, existiam seis oficinas, e em Paranhos da Beira, dezasseis, onde se produzia louça vermelha, ordinária, não vidrada. Charles Lepierre, em 1899, confirmava que “no distrito da Guarda, se fabricava alguma loiça preta no concelho de Seia, nas localidades de Paranhos de Baixo, Paranhos de Cima e Carvalhal”. Anteriormente, no Inquérito Industrial, de 1890, refere-se a produção de cerâmica no concelho de Seia, na categoria de “pequena indústria “e no fabrico de louça preta ou vermelha, telha e tijolo”. Alberto Correia, em 1976, descreve o modo como o barro é preparado pelos oleiros do Carvalhal da Louça: “Encontram-no no Ervedal da Beira (…). Mas os campos de barro nunca pertenceram aos oleiros. (…) Carros de bois remansosos traziam-no em marchas longas, penosas. (…) Uma porta escancarava-se, deixando entrar a luz e os olhares para um espaço amplo, interior, térreo, de paredes de alvenaria pobre, enegrecidas do tempo e do fumo. (…) Ao deslado dispõe-se a ‘banca’, tosca, baixa, da última preparação do barro e as tábuas que hão de encher-se para o sequeiro e que hão de subir ainda para os varões fortes do ‘desvão’. A um canto armazena-se o barro, quando há espaço. Senão, guarda-se num ângulo do quintal. (…) No princípio é só o barro, virgem, o ‘barro forte’, o ‘barro fraco’, um junto do outro, acondicionados com cuidados de pobre no recanto do quintal ou no ângulo do rés da olaria. Daqui toma o oleiro a quantidade necessária para a obra de muitos dias. Atira-o para uma laje côncava ou para a cova aberta na terra, há muitos anos, em cuja capa endureceu a argila de várias gerações. Rega-o com água e os seus pés descalços vão calcando esse barro, retalhado também a golpes de enxada, até as finas partículas de argila se unirem e atingirem a necessária plasticidade que as apronta quase para a roda. Toma depois o oleiro, e a mulher, tão firme ajuda no seu trabalho, dois enormes torrões daquela massa informe, colocam-nos sobre a ‘banca’ e sentam-se ao lado ou curvam-se como sobre infante. É o ‘apurar o barro’, ação que se orienta para uma tríplice finalidade: retirar pequenas impurezas, homogeneizar a pasta eliminando todos os espaços vazios e imprimir à argila o máximo grau de plasticidade. As mãos dos oleiros estendem-se sobre o barro e, fazendo força sobre a palma, deslizam, esmagando a argila em movimento que avança, regressando a mão leve para avançar de novo. Os dorsos dos homens levantam-se a espaços e os dedos, minuciosos, escolhem areias, pequenos torrões, arestas de madeira, deixando mais pura a argila. E assim trabalhando, estes homens se esquecem do tempo, como medievos obreiros. Ao fim de uma hora a pasta estará pronta. No retângulo imperfeito do barro desprendido com o gume da ‘rapadoira’, o oleiro corta no sentido da largura, 2, 3 ou mais pedaços e, um a um, o oleiro bate-os nas mãos, lançando-os com força de uma mão para outra (ação de ‘empoleirar’). Obtém assim um núcleo de feição ligeiramente cónica, o ‘poleiro’, cujo porte será proporcional ao tamanho do vaso a fabricar.»
Os artefactos de barro acompanham o homem desde o neolítico e, de acordo com as regiões, têm sido tantos quantos a finalidade e os usos e costumes locais. Acreditamos que em Paranhos da Beira e na sua anexa Carvalhal da Loiça se produziram muitos e muitos utensílios. Porém, devido à sua fragilidade, muitos desses artefactos perderam-se irremediavelmente, sem que se tenham recolhido, de alguma forma; outros, porventura os menos utilizados, ficaram “guardados” no fundo de um sótão, de um “forro” ou de uma “loja” e, hoje, nós, mais conscientes da sua importância, consideramo-los objetos decorativos ou, então, exibimo-los em museus para preservá-los, estudá-los e catalogá-los. Ainda assim, tentámos saber junto de alguma população do Carvalhal da Loiça que objetos teriam sido produzidos pelos seus oleiros, tendo-nos sido dito que se produziam púcaros, púcaras, alguidares, talhas, cântaros, cântaras, cafeteiras, entre outros, de uso comum. Convém aqui realçar que, até à década de cinquenta do século passado, a venda da olaria era feita não apenas pelos oleiros mas, igualmente, pelas suas mulheres e filhos, que se deslocavam porta a porta pelas freguesias vizinhas (como havia muita produção, e a necessidade económica assim o impunha, a comercialização de louça também se fazia fora do concelho de Seia). O transporte das peças de barro era feito às costas, pelos homens, ou à cabeça, pelas mulheres e filhas dos oleiros, que iam descalços pelos caminhos agrestes e escarpados das montanhas, tanto no verão como no inverno, para localidades como Valhelhas e Sameiro. Também se utilizava o transporte por burros. Outro momento privilegiado para as vendas seria nas feiras e romarias da região.
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